sábado, 12 de setembro de 2009

FOGO SELVAGEM

 Naquela noite, os gritos de lamento e os cânticos fúnebres encheram a floresta, assustando o tapir na vereda e inquietando o tinga no chavascal.
 Sérgio Aparecido Dias

Corria o ano de 1972.  Os moradores das margens do rio Purús e do rio Tapauá ,  especialmente os do povoado “Boca do Tapauá”, de há muito haviam se familiarizado com a presença dos Apurinãs.  Portanto  não foi motivo de apreensões que, naquele dia, 12 de junho de 1972, houvesse intenso movimento de selvagens no povoado. Boca do Tapauá estava em franco progresso. A castanha, a sorva e a borracha atraiam sulistas, nordestinos e amazonenses de outros municípios, na ilusória esperança de um enriquecimento rápido.  As atividades comerciais cresciam, em virtude da grande produção de castanha e de borracha.   A cada dia surgiam mais notícias sobre a descoberta de novos seringais e castanhais, além de sorveiras, cujo leite é utilizado para obter um látex quase tão bom quanto o das seringueiras, matéria-prima para a industrialização da borracha.  A vizinhança com a aldeia dos Apurinãs não era motivo de alarme.   O seu líder, um índio jovem, forte e musculoso chamado Meruoka, procurava integrar-se aos civilizados.   Desde que havia saído do alto Purús para formar sua própria aldeia, vindo morar próximo de Boca do Tapauá, Meruoka sempre tinha guiado seus guerreiros no caminho da paz.   Na verdade, os moradores da região deviam aos índios o seu progresso, pois eles os ajudavam na localização dos seringais e castanhais.  Mas...com a febre da riqueza, veio juntamente a febre da volúpia.   Depois de meses de atividades nas selvas, no retorno ao povoado, a promiscuidade campeava e imperava, arrastando civilizados e silvícolas nas ondas procelosas do prazer carnal.  Porém, o organismo dos colonizadores, infectados de vírus e bactérias, era um verdadeiro agente contaminador e disseminador de doenças várias, para as quais os indígenas não possuíam anticorpos. 

E a morte visitou a casa de Meruoka.   Meruoka, de cujo olhar ameaçador as onças fugiam, que fazia voar a sua igara sobre os banzeiros do grande rio Purús e porfiava com a pirarara e com o pacamom, nada pode fazer para evitar a morte de seus queridos.  Naquela noite, os gritos de lamento e os cânticos fúnebres encheram a floresta, assustando o tapir na vereda e inquietando o tinga no chavascal.   Os raios de sol da manhã de 14 de junho de 1972 coavam por entre as ramadas da aquariquara e faziam reluzir a pele recentemente pintada de Meruoka, que, acocorado à beira do igapó, conversava com o velho pajé enquanto trabalhava um arco.   O Grande Espírito tinha visitado o velho Dinamã durante a noite, numa visão, e havia lhe mostrado a raiz do mal  Não havia dúvidas: o feitiço dos filhos do mau espírito eram os causadores das mortes que trouxeram tristezas para a aldeia.   A sorte dos ribeirinhos estava lançada!

Eram 3 horas da tarde, 16 de junho de 1972.   Antônia do Perpétuo Socorro dirigia-se ao rio com a trouxa de roupas sujas.   Cantarolava inocentemente, sem perceber os vultos pintados que se insinuavam entre as folhagens.  Era uma bela tarde: os magoarís e as garças voavam altaneiros; os galos da serra evocavam ternas recordações; o mutum gemia, como que se lamentando de alguma desgraça.  Antônia levantou os olhos a uma revoada de mergulhões e, então, a flecha disparou como um raio do arco retesado de Meruoka, e partiu em sua direção.  Com um grito lancinante, Antônia tombou sobre as roupas que lavava, com o peito trespassado pela seta assassina.   A horda selvagem penetrou aos gritos no terreiro da casa de Raimundo Nonato, não dando a mínima chance de defesa a ele, aos seus 5 filhos, às suas filhas e ao seu empregado.   Flechas e chumbo cruzavam o ar e estrugiam na mata, enquanto a família de Raimundo ia se extinguindo vida por vida.   A única saída da casa até ao barco amarrado à margem do rio foi interceptada pelos índios, que, dominados pelo ódio e incitados pela caiçuma, forçavam a frágil porta de itaúba, única barreira entre eles e os poucos sobreviventes. 

Mas Fernando, o empregado de Raimundo Nonato, não estava resignado a morrer daquela maneira.  Havia uma chance em mil de escapar dalí com vida e ele ia tentar!   Mal a porta cedeu sob a pressão de dezenas de corpos pintados de genipapo e urucum, irrompeu entre os selvagens, abrindo uma brecha mortal com seu rifle papo amarelo calibre 44.  Correndo em direção ao rio, sob uma verdadeira chuva de flechas, lançou-se às águas, alcançou o barco, desamarrou-o, colocou o motor em funcionamento e largou em direção ao povoado.  Lá também, as balas assobiavam entre as sorveiras e as flechas zuniam sobre as cabanas.  Os índios porém, inferiores em armas, retiraram o cerco e então formou-se uma expedição que partiu em socorro à família do infeliz Raimundo.  De longe, avistaram a cabana em chamas.  A cabeça de Raimundo Nonato jazia a um canto do terreiro, os olhos ainda estampando o horror e a angústia.  O resto de seu corpo e dos corpos de seus filhos, torturados e mortos; e de suas filhas, violentadas e assassinadas, eram disputados pelos urubús.   O Grande Espírito tinha vingado o seu povo.
            
         Uma guarnição do 1º Batalhão de Infantaria de Selva saiu do interior do C 47 da Força Aérea Brasileira e encheu as duas lanchas que os esperavam.   Liderados pelo tenente-aviador Fábio Costa, os soldados marcharam selva adentro em direção à aldeia dos Apurinãs.   Houve pouca resistência por parte dos índios.   Após uma breve batalha de um cerrado tiroteio, os guerreiros sobreviventes foram dispersos e Meruoka preso.   Levado a Manaus, foi forçado a prestar um juramento de paz e a abandonar a região do rio Tapauá com todo o seu povo.  E assim, o problema foi resolvido e a paz voltou a reinar.   Mas os corpos insepultos de Raimundo Nonato e de dezenas de índios, clamam por justiça!  O hediondo massacre é mais que uma simples lição do comportamento dos indígenas; é um protesto contra a arremetida gananciosa da mal-rotulada “civilização” que, acobertada pela chamada “integração”, leva todo tipo de vícios e degradações ao único povo que, nesta terra, pode ser verdadeiramente chamado de brasileiro.

   Escrita em Cianorte - PR, 23/04/1975   

    POST-SCRIPTUM

Trabalhei como missionário cerca de 1 ano no município de Tapauá, cidade às margens do rio Ipixuna, (onde o rio Ipixuna deságua no grande rio Purús) e conhecí pessoalmente o chefe Meruoka, numa aldeia dos Apurinãs próxima da cidade.  Ele havia saído de “Boca do Tapauá ”, um pequeno povoado às margens do rio Tapauá (distante da foz do Ipixuna vários dias de viagem) em 1973, cerca de 1 ano após o massacre.  O material para a composição do relato acima eu o colhí com os moradores da região, inclusive com alguns que participaram dos acontecimentos.   Alguns nomes e datas foram alterados na obra original ( principalmente do comandante do destacamento militar )  porque eu morava na localidade e, mesmo havendo concluído o trabalho no Paraná, resolví deixar como estava.  Segundo me foi relatado, os “civilizados” também cometeram atrocidades na hora da vingança, acobertados pelos militares, mas isto não teria chegado aos ouvidos das autoridades em Manaus.  Tentei obter mais detalhes com o próprio Meruoka, mas o olhar frio e duro que ele me lançou, segurando em suas mãos o seu arco de guerra, quando estávamos frente à frente em sua aldeia, convenceu-me de que era melhor não insistir.
Sérgio Aparecido Dias

 

Glossário

ü  Aquariquara – Árvore comum nas terras firmes, muito resistente e utilizada como esteios, mourões e postes. É comum durarem mais de vinte anos, depois de beneficiadas e transformadas em colunas, vigas e suportes.
ü  Banzeiro – Movimento nas águas causado pelo vento; ondas, marolas
ü  Caiçuma – Espécie de cachaça indígena, produto da fermentação da mandioca, do milho e outros cereais
ü  Chavascal – Área  pantanosa, composta de partes alternadamente secas e alagadas
ü  Genipapo – Fruta muito comum na Amazônia, rica em ferro, usada em sucos e na medicina; os índios fabricam tinta para pintar os seus corpos em rituais e na guerra
ü  Igapó – Área de floresta alagada, geralmente por 4 meses ou mais, anualmente
ü  Igara – Canoa indígena, feita de casca de árvore
ü  Itaúba – Árvore de madeira resistente, especialmente à água, muito usada em pontes e na fabricação de canoas, botes , barcos e pequenos navios
ü  Pacamom – O Jaú da Amazônia, enorme peixe de couro, grande gigante das águas, devorador não só de peixes, mas também da espécie humana, chegando a atingir cerca de 3 metros e mais de 200 quilos
ü  Pirarara – Grande peixe de couro, temido por sua voracidade, atingindo mais de 2 metros de comprimento, tão perigoso quanto a piraíba, outro gigante das águas. Esses 3 predadores são os mais temidos e respeitados da Amazônia e são também saborosíssimos. Os lagos e rios da Amazônia são cheios deles.
ü  Sorveira – Árvore que produz uma resina, a sorva, tendo o mesmo uso prático do leite da seringueira, na produção de borracha e impermeabilizantes
ü  Tapir – Anta (o maior mamífero da Amazônia, chega a pesar mais de 300 Quilos)
ü  Tinga – A espécie mais comum de jacarés da região amazônica, cerca de 2 metros
ü  Urucum – O mesmo que colorau. É usado como tempero em todo Brasil (depois da semente seca e moída), mas os índios utilizam as sementes ao natural, e as esmagam  para fabricar tinta, em conjunto com outras substâncias 
ü  Vereda – Caminho feito na selva, traçado pelos animais em suas rotas, na busca de comida e água. Os caçadores colocam armadilhas e armam tocaias ao longo dessas veredas.  Os pequenos caminhos entre as chamadas “estradas de seringa”, feitas pelos seringueiros, bem como os atalhos e estradas que unem os seringais através da floresta, também são chamados de veredas 
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